Friday, May 26, 2006

Resposta a Florence Nightingale, nas suas loucuras de 17 de Maio

Júlio era varredor. Calcorreava diariamente as ruas empedradas e varria com a sua vassoura o passado dos outros. Pontas de cigarro, guardanapos com restos de doce de ovos, facturas de multibanco, caricas enferrujadas, secreções adoentadas, apontamentos de aulas. Os despojos das acções de quem passou por onde Júlio varria (quiçá, entre eles, algum varredor também).

Era infeliz. Não gostava de varrer. Entristecia-o a rotina fraudulenta de destruir provas, evidências de uma realidade construída de dia que ele destruía de noite, com a vassoura, preparando o dia seguinte para mais uma repetição, mais um reinício, mais um chão brilhante pronto a acolher de novo o existir dos outros (e o seu próprio).

E, pensava Júlio, com razão, “de que serve o presente, se passado umas horas ele será passado e virá quem o apague, com vassouras (ou calúnias)? Para que preparo eu o futuro de mais um dia se no dia seguinte já o estarei a apagar de novo?”.

E então, Júlio apercebeu-se da insignificância da acção e, com ela, do tempo; e com a insignificância do tempo e da acção, Júlio desprezou a matéria, varrendo-se a si próprio sem piedade nem pudor, varrendo consigo o varrer da noite seguinte e de todas as noites que haviam de vir, naquela rua e noutras, validando assim o presente do dia seguinte, deixando-o tornar-se a base do presente de muitos outros dias, que nunca seriam varridos e que formariam para sempre uma sucessão de momentos jamais varridos, um amontoar de cigarros fumados, bolos comidos, pagamentos efectuados, cervejas bebidas, pulmões aliviados e lições aprendidas, uma pirâmide de acções e realidades em que ele nada seria senão o passado varrido por si próprio.

RE: Licopeno

Caro sobreolho,

Por favor! Filetes de tamboril com ketchup?

Wednesday, May 03, 2006

Dubai - o último reduto do niilismo ou as aparências iludem?


Ia desfazer com palavras amargas e acusadoras a indústria de turismo que se vai desenvolvendo loucamente no Dubai, por considerar que a amálgama de resorts e praias artificiais que atraem as pessoas comprometem a minha visão do que é viajar: procurar algo de genuíno e, eventualmente, de diferente. Estava irritado com a artificialidade de umas férias passadas num local imaginário, desenraízado e feito à medida, que representa o contrário do desenvolvimento natural e intuitivo de um espaço (de uma cidade; de um país), desenvolvimento esse que me parece ser o factor motivador de uma viagem.

Isto é, assustava-me (e ainda assusta) o facto de aquilo ser um sítio feito "à medida", trazendo assim consigo os vícios do desenfreio científico, dos quais a clonagem é o expoente mais trágico: a construção da perfeição a partir do nada nega a possibilidade da evolução natural e, com isso, o desenvolvimento de anti-corpos.

Ora bem, após um breve diálogo com sobreolho decidi abster-me de criticar em demasia um local que nem conheço fisicamente (apesar de manter a minha posição fortemente crítica face ao conceito de turismo no Dubai) e dedicar-me mais ao lado louvável do que é o Dubai, do qual me apercebi exactamente nessa pequena conversa.

Acontece que o Dubai consome apenas 5% das suas receitas de petróleo (o que implica que investe - já que assumo que não poupa nada - 95% das receitas milionárias).

Países como a Arábia Saudita, por exemplo, não souberam o que fazer com as receitas exponenciais desde há décadas e degeneraram em ditaduras esbanjadoras semi-permissivas, em que a elite política que beneficia com o petróleo compra a liberdade dos súbditos através dos petrodólares, isto é, não lhes oferece democracia nem desenvolvimento mas, em troca, usa uma pequena parte das fortunas petrolíferas para proporcionar à população o essencial à sua sobrevivência e poder assim gastar desmesuradamente o resto sem ser criticada.

O exemplo do Dubai deu-me que pensar, porque lá está-se a re-investir quase tudo, de forma a assegurar um futuro sustentável para o Emirado. Investe-se em turismo, em alta finança, em conhecimento..está-se a tentar fazer do Dubai um local credível, isto é, transformar um deserto num oásis.

Ora isto leva-me a pensar na própria motivação humana e nos drivers que a movem: ponho-me no lugar dos líderes do Dubai e tento descobrir qual a melhor forma de atrair pessoas para ali, pessoas essas que, uma vez acabado o petróleo, lá permaneçam.

O que é que atrai as pessoas? Como transformar um nada num local onde famílias viverão felizes, uma vez terminado o petróleo?

E - mantendo a minha dúvida inicial, que no âmbito deste raciocínio ainda se torna mais crítica - tiro o chapéu aos barões do petróleo do Dubai, que se aperceberam do problema e estão a pôr em prática a solução possível, num local desenraízado: colonizá-lo.

E assim, toda a artificialidade se transforma em isco, com o objectivo de chamar pessoas de origens culturais diversas (movidas pelo driver comum a todas, que é o luxo) que, uma vez sentindo-se bem no Dubai, quiçá por lá fiquem, criando através da sua permanência e da sua actividade uma economia que sobreviva ao petróleo.

O desenfreio que eu critico é, no Dubai, um meio maquiavélico (na acepção original da palavra) de atingir um fim.

Aliás, a estratégia - que eu não conheço e, portanto, sobre a qual especulo - é genial e segue uma lógica inatacável:

Somos um local ermo cheio de dinheiro --> o dinheiro vai acabar se não investirmos --> são necessárias pessoas que, impulsionadas pelo investimento, sejam as pioneiras de uma economia sustentável --> temos de chamar pessoas que se estabeleçam aqui --> o maior chamariz em todo o Mundo é o luxo e a qualidade --> vamos atrair pessoas pelo luxo e criar paralelamente uma economia de serviços --> uma percentagem vai sentir-se bem e ficar --> quando acabar o petróleo, teremos uma economia funcional independente do petróleo e um Emirado no meio do deserto e originalmente desenraizado, povoado por uma sociedade liberal, multicultural e pioneira.

Brilhante, tendo em conta o que se passa no resto do mundo árabe.