Viajar no espaço
Estou aqui um bocadinho preocupado com fronteiras.
Ontem fui ao aeroporto confirmar o meu vôo de ida para Caracas, Venezuela e regresso à Europa por Lima, Perú e, para meu espanto, uma simpática (mas não tão bonita) menina da TAP informa-me que tenho de "comprar um bilhete de regresso também a partir da Venezuela". Também a parir da Venezuela, senhora? (Agora escrevi "parir" sem querer, queria dizer "partir", claro) Enfim, demasiado atabalhoado com a ideia de pagar mais uns 500 Euros para poder pensar na razão de ser daquilo, a uma semana da partida, balbuciei um "é capaz de me explicar porquê?!" com uma tonalidade educada mas a voz frouxa de espanto, ao que a tal menina feia me responde que o governo Venezuelano assume que, se eu não tenho bilhete de saída da Venezuela, é porque lá fiquei! "Aliás, nem o deixam descolar daqui da Portela sem um bilhete de ida e volta do mesmo país, lá na América do Sul.."
Fiquei de boca aberta! Mas perderam a cabeça? Entao eu dou-me ao trabalho de planear um trajecto de autocarro pelas Américas, escolhar o melhor sítio para aterrar e levantar vôo, falar com 50 assistentes telefónicos de 15 companhias da Star Alliance para, dias depois de ter comprado finalmente a minha ida e volta e me terem sorrido cinicamente no momento de as pagar, me virem dizer - porque por acaso fui ao aeroporto falar com eles sobre outro assunto - que não acreditam que eu não me vou ficar na Venezuela quando chegar! Na Venezuela, meus amigos!! Mas quem, no seu perfeito juízo, pode sequer pôr a hipótese de um cidadão português na posse de, para além de um bilhete de regresso Lima-Lisboa, todas as suas capacidades mentais, se ficar na Venezuela! Ainda por cima sem dizer nada a ninguém, do tipo: "Olhe, eu quero fugir para a Venezuela, ouvi dizer que aquilo é muita giro..gastei aqui estes 700 Euros no bilhete Lima-Lisboa, mas isto é só para os enganar! Eheh! Eu quero é ir para a Venezuela, mas em segredo..!! Até marquei o regresso com escala em S.Paulo, para dar um ar mais cosmopolita e menos emigra!"
Se nos ficássemos por esta gritantemente ingénua suposição de que eu queria imisicuir-me ilegalmente no caos petrolífero da Venezuela, ainda vá que não vá: há malucos para tudo, e a menina feia não pode adivinhar que eu sou suficientemente lúcido para não cometer tal disparate. Mas não! Isto ainda vai mais longe! É que apesar de me faltar um bilhete de saída da Venezuela, eu tenho um de saída do Peru. Ou seja, eu hei-de ir ao Peru! Quer dizer, acreditam mais facilmente que eu aterro na Venezuela, saio do avião e deito fora o bilhte de regresso, do que que eu aterro na Venezuela e sigo para o Peru, de onde apanho o meu avião para Lisboa!!
Isto não é de loucos? "Olhe, tem aqui o seu bilhete. Pronto, Lisboa-Caracas e Lima-S.Paulo-Lisboa, um mês e meio depois. Agora, falta só um bilhete de regresso, percebe? É que nós achamos que você não vai ao Peru! Provavelmente neste mês e meio não vai andar a viajar entre Caracas e Lima, aliás isso de você ter acabado o curso e querer fazer uma viagem antes de começar a trabalhar deve ser mentira de certeza. Vai mesmo ter de regressar pela Venezuela. Esse bilhete do Peru? Ah não sei, use-o como quiser..pode ficar com ele, tem é de ter um de regresso pela Venezuela!"
Ou seja, eles não me deixam ir à Venezuela e voltar pelo Peru mas já me deixam ir à Venezuela e voltar pelo Peru e pela Venezuela, no mesmo dia até, se for preciso! Portanto, assume-se nos acordos aéreos e de emigração internacionais, que um ser humano mais facilmente se multiplica (ou consegue estar em dois sítios ao mesmo tempo) do que vai usar um vôo que marcou e pagou, ainda que este mostre um itinerário por terra perfeitamente razoável!
Basicamente, isto é uma falta de confiança de um país no seu sistema de transportes públicos: por definição e desconfiança, um Estado não permite que ninguém aterre no seu território e de lá saia pelo seu próprio pé! "Entras de avião, sais de avião, caso contrário é porque queres ficar cá!" E isto com um bilhete de regresso de um país vizinho para o meu país natal, por sinal membro de uma Europa desenvolvida e parte integrante do grupo dos países desenvolvidos.
Enfim, acabo como comecei: estou aqui um bocadinho preocupado com fronteiras. A Lei internacional é robótica e mecanizada, sem o mínimo de hibridez suficiente para permitir a aplicação de um raciocínio lógico. Os Estados olham para si próprios como caixas de metal blindadas, e ao invés de uma burocracia mundial única, cada um vale por si. Se eu por acaso planeasse ir de Caracas ao Brasil por terra e daí apanhar um avião para o Chile, e do Chile um autocarro para o Peru, para depois regressar, os chilenos obrigavam-me a ter um vôo de saída do Chile: mais uma vez, assumiriam que eu queria ir de autocarro e de avião, o importante era garantir que eu saía dali!
Fomos postos neste planeta com inteira liberdade, e porque nos odiamos mais do que amamos, inventámos linhas num espaço imaginário para evitar que seres da nossa própria espécie atravessem o que consideramos ser nosso, propriedade essa que conquistámos com confrontos sanguinários entre nós e os nossos iguais. Sentimo-nos seguros dentro desse espaço imaginário, de onde nem notamos que saímos, se por acaso contornarmos a estrada e o posto fronteiriço, ao atravessar a linha. Defendemos a linha com unhas e dentes, e dois irmãos gémeos que nasceram em cima da linha, mas um de cada lado, porque a mãe estava deitada exactamente a meio, podem vir a ter de se matar, pelo direito a manter a linha segura e intacta. Deixamos barcos de refugiados afundarem-se nos mares do Mundo, porque preferimos isso do que deixá-los passar para o nosso lado da linha. A linha é nossa, impenetrável, e tanto faz quem está do lado de lá, isto é meu, isso é teu.
Os animais selvagens fazem exactamente o mesmo. Mas as linhas são de urina.
Então, se os animais as marcam com urina, eu acho que nós devíamos cagar nas fronteiras.
Mudei o vôo de Lisboa-Caracas para Lisboa-Recife. Como o regresso tem escala em S.Paulo, os brasileiros acreditam que eu não me fico no Brasil. Os venezuelanos, esses, suspiram de alívio por me ver longe, não fosse eu ficar e ajudá-los a destruir mais um desses ditadores que povoam os ares deste desconfiado Mundo.
Ontem fui ao aeroporto confirmar o meu vôo de ida para Caracas, Venezuela e regresso à Europa por Lima, Perú e, para meu espanto, uma simpática (mas não tão bonita) menina da TAP informa-me que tenho de "comprar um bilhete de regresso também a partir da Venezuela". Também a parir da Venezuela, senhora? (Agora escrevi "parir" sem querer, queria dizer "partir", claro) Enfim, demasiado atabalhoado com a ideia de pagar mais uns 500 Euros para poder pensar na razão de ser daquilo, a uma semana da partida, balbuciei um "é capaz de me explicar porquê?!" com uma tonalidade educada mas a voz frouxa de espanto, ao que a tal menina feia me responde que o governo Venezuelano assume que, se eu não tenho bilhete de saída da Venezuela, é porque lá fiquei! "Aliás, nem o deixam descolar daqui da Portela sem um bilhete de ida e volta do mesmo país, lá na América do Sul.."
Fiquei de boca aberta! Mas perderam a cabeça? Entao eu dou-me ao trabalho de planear um trajecto de autocarro pelas Américas, escolhar o melhor sítio para aterrar e levantar vôo, falar com 50 assistentes telefónicos de 15 companhias da Star Alliance para, dias depois de ter comprado finalmente a minha ida e volta e me terem sorrido cinicamente no momento de as pagar, me virem dizer - porque por acaso fui ao aeroporto falar com eles sobre outro assunto - que não acreditam que eu não me vou ficar na Venezuela quando chegar! Na Venezuela, meus amigos!! Mas quem, no seu perfeito juízo, pode sequer pôr a hipótese de um cidadão português na posse de, para além de um bilhete de regresso Lima-Lisboa, todas as suas capacidades mentais, se ficar na Venezuela! Ainda por cima sem dizer nada a ninguém, do tipo: "Olhe, eu quero fugir para a Venezuela, ouvi dizer que aquilo é muita giro..gastei aqui estes 700 Euros no bilhete Lima-Lisboa, mas isto é só para os enganar! Eheh! Eu quero é ir para a Venezuela, mas em segredo..!! Até marquei o regresso com escala em S.Paulo, para dar um ar mais cosmopolita e menos emigra!"
Se nos ficássemos por esta gritantemente ingénua suposição de que eu queria imisicuir-me ilegalmente no caos petrolífero da Venezuela, ainda vá que não vá: há malucos para tudo, e a menina feia não pode adivinhar que eu sou suficientemente lúcido para não cometer tal disparate. Mas não! Isto ainda vai mais longe! É que apesar de me faltar um bilhete de saída da Venezuela, eu tenho um de saída do Peru. Ou seja, eu hei-de ir ao Peru! Quer dizer, acreditam mais facilmente que eu aterro na Venezuela, saio do avião e deito fora o bilhte de regresso, do que que eu aterro na Venezuela e sigo para o Peru, de onde apanho o meu avião para Lisboa!!
Isto não é de loucos? "Olhe, tem aqui o seu bilhete. Pronto, Lisboa-Caracas e Lima-S.Paulo-Lisboa, um mês e meio depois. Agora, falta só um bilhete de regresso, percebe? É que nós achamos que você não vai ao Peru! Provavelmente neste mês e meio não vai andar a viajar entre Caracas e Lima, aliás isso de você ter acabado o curso e querer fazer uma viagem antes de começar a trabalhar deve ser mentira de certeza. Vai mesmo ter de regressar pela Venezuela. Esse bilhete do Peru? Ah não sei, use-o como quiser..pode ficar com ele, tem é de ter um de regresso pela Venezuela!"
Ou seja, eles não me deixam ir à Venezuela e voltar pelo Peru mas já me deixam ir à Venezuela e voltar pelo Peru e pela Venezuela, no mesmo dia até, se for preciso! Portanto, assume-se nos acordos aéreos e de emigração internacionais, que um ser humano mais facilmente se multiplica (ou consegue estar em dois sítios ao mesmo tempo) do que vai usar um vôo que marcou e pagou, ainda que este mostre um itinerário por terra perfeitamente razoável!
Basicamente, isto é uma falta de confiança de um país no seu sistema de transportes públicos: por definição e desconfiança, um Estado não permite que ninguém aterre no seu território e de lá saia pelo seu próprio pé! "Entras de avião, sais de avião, caso contrário é porque queres ficar cá!" E isto com um bilhete de regresso de um país vizinho para o meu país natal, por sinal membro de uma Europa desenvolvida e parte integrante do grupo dos países desenvolvidos.
Enfim, acabo como comecei: estou aqui um bocadinho preocupado com fronteiras. A Lei internacional é robótica e mecanizada, sem o mínimo de hibridez suficiente para permitir a aplicação de um raciocínio lógico. Os Estados olham para si próprios como caixas de metal blindadas, e ao invés de uma burocracia mundial única, cada um vale por si. Se eu por acaso planeasse ir de Caracas ao Brasil por terra e daí apanhar um avião para o Chile, e do Chile um autocarro para o Peru, para depois regressar, os chilenos obrigavam-me a ter um vôo de saída do Chile: mais uma vez, assumiriam que eu queria ir de autocarro e de avião, o importante era garantir que eu saía dali!
Fomos postos neste planeta com inteira liberdade, e porque nos odiamos mais do que amamos, inventámos linhas num espaço imaginário para evitar que seres da nossa própria espécie atravessem o que consideramos ser nosso, propriedade essa que conquistámos com confrontos sanguinários entre nós e os nossos iguais. Sentimo-nos seguros dentro desse espaço imaginário, de onde nem notamos que saímos, se por acaso contornarmos a estrada e o posto fronteiriço, ao atravessar a linha. Defendemos a linha com unhas e dentes, e dois irmãos gémeos que nasceram em cima da linha, mas um de cada lado, porque a mãe estava deitada exactamente a meio, podem vir a ter de se matar, pelo direito a manter a linha segura e intacta. Deixamos barcos de refugiados afundarem-se nos mares do Mundo, porque preferimos isso do que deixá-los passar para o nosso lado da linha. A linha é nossa, impenetrável, e tanto faz quem está do lado de lá, isto é meu, isso é teu.
Os animais selvagens fazem exactamente o mesmo. Mas as linhas são de urina.
Então, se os animais as marcam com urina, eu acho que nós devíamos cagar nas fronteiras.
Mudei o vôo de Lisboa-Caracas para Lisboa-Recife. Como o regresso tem escala em S.Paulo, os brasileiros acreditam que eu não me fico no Brasil. Os venezuelanos, esses, suspiram de alívio por me ver longe, não fosse eu ficar e ajudá-los a destruir mais um desses ditadores que povoam os ares deste desconfiado Mundo.